O Destino Último

Era uma nave tão grande que seria perenemente confundida com um planeta, não chegasse o dia em que ela finalmente pousaria no seu destino último: o mundo no qual todos deixariam de ser passageiros para se tornarem residentes perpétuos.

Um desembarque de tamanha proporção não se fez instantaneamente. Demorou o equivalente a noventa anos da nave Terra para todos desembarcarem. Para alguns foi menos, para outros, mais, em função de seus lugares na fila ordenada que estabelecia o tempo de cada um. Enquanto ocorria, os passageiros na grande nave variavam distrações, entre dormir, despertar e entreter-se com ocupações que lhes davam um propósito imanente, ilusoriamente sustentado durante a viagem. 

Um dia o desembarque seria concluído, e assim se fez. Todos acordaram de súbito num lugar que nada tinha de diferente da nave, exceto a sensação de definitivo que cada um sentiu imediatamente ao despertar. Ao desembarque, foram dadas diferentes denominações, segundo as crenças aprendidas por diferentes grupos: desencarne, transcendência, ou simplesmente vida pós-morte.

As reações foram as mais diversas, e todas se resumiam em duas: satisfação e frustração. 

— Tanto tempo e trabalho para chegarmos nisso? – diziam os frustrados.

— Que destino maravilhoso fizemos por merecer! – diziam os satisfeitos, com profundo sentimento de privilégio, mais do que gratidão. 

Até mesmo os agradecidos confundiam conformismo com gratidão. Nada havia de novo sob o sol do paraíso. 

— Paraíso? Por que chamam de paraíso este lugar horrível, escuro, frio e úmido? Onde está o sol que dizem ver, e eu nem ao menos o sinto? – perguntou Moacir*, claramente tomado de decepção e ressentimento. 

— Você não vê o que nós outros vemos? O sol é brilhante, o céu é azul e límpido, seu calor tem a brandura da primavera e são fartas as flores por todos os lados! – dizia Tainara**, radiante no seu estado de graça.

— Eu não vejo o sol, mas também não sinto frio. Não esperava que o paraíso fosse esse nublado cinza que vejo, para qualquer direção em que olho! – disse Hurassí***.

As manifestações se multiplicavam. Não demorou para que a insatisfação tomasse conta do paraíso.

— Não é justo que Tainara veja o sol e eu não! O paraíso é mau! – reclamava Moacir.

— Não é justo que eu tenha que conviver com suas reclamações no meu paraíso bom! Você é que é o mau – replicava Tainara.

— A culpa é de Hurassí, que trouxe suas nuvens cinzas consigo! Ele é o mal! – continuava Moacir, em sua indignação.

— Vocês é que começaram essa disputa por justiça, e querem injustamente culpar a mim? Eu sou bom, vocês são maus! – respondeu Hurassí.

Juntos, todos foram ter com o Grande Anfitrião, a fim de expor suas reivindicações.

— Cada um de vocês se considera justo e bom, e não percebem que estão todos num mesmo lugar, acusando-se uns aos outros? Por que insistem em fazer do paraíso um inferno? O bem e o mal só existem em seus corações! – disse o Grande Anfitrião.

— Eu amo meu paraíso! Fui justamente recompensada! Inferno será conviver com as turmas do Moacir e do Hurassí! Eles é que não deveriam estar aqui! – disse Tainara, segura de seu direito de posse exclusiva do paraíso.

— Tainara, Moacir e Hurassí: nada do que vocês veem, é. Tudo no paraíso, está. E vocês veem o que concebem de suas realidades. Bem e mal não existem aqui. Inferno e paraíso também não. Vocês chegaram em seu destino último. Não há mais para onde ir. Cabe a vocês escolherem a eternidade na qual viverão, e ela não está no lugar, sim dentro de vocês. – continuou o Grande Anfitrião.

— Caramba! Eu sabia que esse negócio de ser bom ou mal não daria em nada! No final, nos ferramos do mesmo jeito! – disse Moacir, revoltado.

— Bem feito pra você! Eu vejo o sol porque fui um exemplo de boa pessoa! Você não vê; problema seu! – disse Tainara, orgulhosa.

— Vocês saltaram da nave e continuam viajando! Certo fui eu que não vejo o sol, mas também não estou no escuro! – disse Hurassí, conformado.

— Eu devia ter escolhido outra função no paraíso... – pensou alto, o Grande Anfitrião.

— Xi! Até o Grande Anfitrião está descontente! – debochou Moacir.

— Cala a boca, Moacir! Quer piorar nossa situação? – disse Hurassí.

— Viu, Grande Anfitrião... como eles são ingratos? Só eu sou digna de ver o sol! – disse Tainara.

— Meu descontentamento é pelo eterno descontentamento de todos vocês. Mas vocês não são para me contentar! Chega dessa bajulação, Tainara! Chega de cinismo, Hurassí! Chega de rancor, Moacir! 

— Foi mal... – cochichou Hurassí. – Diante da repreensão do Grande Anfitrião, pela primeira vez todos se entreolharam e reconheceram-se numa única questão em comum, posta em palavra por Hurassí: — O que faremos para não passar a eternidade nos sentindo injustiçados, insatisfeitos e brigando uns com os outros, Grande Anfitrião? 

— Quanto de suas nuvens está disposto a afastar para deixar o sol passar, Hurassí? Quanto do seu sol está disposta a ceder, Tainara? Quanto de sua mágoa está disposto a dissolver, Moacir? Vocês têm a resposta. Sempre a tiveram. Esqueçam a disputa por quem é melhor, começando por você, Tainara, que pensa ter o privilégio da estrela. Digo a você, Moacir: pare de ver apenas o lado ruim de tudo. É tudo o que você precisa para ver o sol. E você, Hurassí, dissipe as nuvens da dúvida que embaçam a visão do Todo, porque você sabe para onde olhar, mas ainda não sabe o que ver. 

— Se fizermos isso você garante que o paraíso será bom para todos? Meu sol não ficará menos brilhante? – perguntou Tainara.

— Seu sol brilhará mais, quanto mais você o fizer chegar aos outros, Tainara. Você deve saber que o sol e o paraíso não lhe pertencem. Ele jamais brilhará somente para você. No entanto, cabe a Moacir e Hurassí o encontrarem também, e quem já o encontrou, deverá ajudá-los. 

— Tô dentro! – concordou Hurassí.

— Cansei de ouvir a mesma história lá na nave. Mas vou na fé, já que não tem mais para onde ir. – disse Moacir.

— Sim, não tem mais para onde ir. Não é onde queriam chegar? Eis a eternidade na qual terão que conviver... para sempre, a menos que mudem a mentalidade... idade... dade... dad...ade... – ressonou em eco pelas florestas, pelos campos, pelas águas e cidades, as palavras do Grande Anfitrião.


Gutto Carrer Lima



(*) Moacir: Significa "dolorido, magoado", "o que vem da dor" ou "o que faz doer, o que magoa". A origem do nome Moacir é o tupi mbo'a'su ira, que junta duas palavras tupis, mbo'a'su, que significa "dor" ou "fazer doer", e ira, que quer dizer "saído de". Moacir é um dos nomes indígenas mais populares no Brasil, e tem como principal variante o nome Moacyr.

(**) Tainara: Significa "estrela", “perfeita”, “iluminada”. Tainara é um nome que está associado ao simbolismo celeste, uma vez que significa estrela e, assim, envolve-se num cenário divino, de perfeição, luz e esperança.

(***) Hurassí: Nuvem. Origem Tupi.




O Destino Último


Comentários

  1. Tio, é a Taynara (Tainara) quero falar para você que gostei de ler sua história.
    Entendi que tem pessoas de diferentes jeitos, conheço muitas pessoas assim na familia e outras na escola. Eu me acho parecida com sua Tainara porque gosto de ver o bem mesmo se nāo tem. A sua historia me ajudou ver que posso ajudar outras pessoas divindo a luz. OBRIGADA

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  2. Oi, Taynara! Fiquei muito contente por seu comentário! Escolhi o nome Tainara porque significa estrela, luz e esperança, em Tupi, que é uma língua indígena nativa do Brasil. Este é o significado do seu nome. Legal, né?! Gostei da sua interpretação. Quando "dividimos" a luz, ela passa a ser vista por todos como um arco-íris, e o mundo fica mais colorido. Que a sua luz brilhe sempre para você a para todos a quem for possível alcançar. Obrigado, e um abraço carinhoso como o da vovó Tereza.

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