Da condenação do riso à condenação de livros


Em "O Nome da Rosa"* – (filme de 1986), uma obra apócrifa é a causa da morte de sete monges num mosteiro do século XIV. O motivo é a não aceitação do riso, pela igreja cristã da Idade Média, que considera rir um pecado. Daí a condenação à morte de todos que leem as páginas envenenadas do único exemplar do livro supostamente escrito por Aristóteles que "discute a comédia como estimulante do prazer ao ridículo usando pessoas comuns e divertindo-se com seus defeitos".

"— Há tantos livros sobre comédia. Por que este lhe causa tanto temor? – pergunta o frei Willian ao venerável Jorge.
— Porque ele é de Aristóteles! – responde o venerável.
— Mas o que há de tão alarmante nisso?
— O riso mata o temor, e sem temor não pode haver fé. Pois se não há temor no demônio, não é necessário haver Deus! – diz o venerável.
— Mas você não eliminará o riso destruindo este livro!
— Não, com certeza. O riso continuará sendo a recreação do homem comum, mas o que acontecerá se, por causa deste livro, homens eruditos declararem permissível rir de tudo? O mundo voltará ao caos. Portanto, eu encerro o que não deve ser dito no túmulo que me torno – diz o venerável, arrancando e comendo as páginas envenenadas do livro."

 Veja o diálogo transcrito acima a partir de 04:10 min no vídeo




Sean Connery é o padre franciscano William de Baskerville e Christian Slater é seu aprendiz Adson von Melk

De Desapego - O Livro: — "Quem não se diverte pensando, dança na valsa de quem pensa. O mundo está cheio de mágicos ilusionistas distraindo nossa visão para outro ponto. Nossa atenção é desviada para o presente e futuro, para que não vejamos a realidade que o passado revela. – ‘‘Os últimos serão os primeiros’’ seria a frase mais confortante de todos os tempos, para os últimos, se não se passasse no futuro. E um revés para os primeiros, que estariam sempre esperando. – O conhecimento histórico que traz a filosofia é inimigo da ilusão (...) – O passado não deve ser revivido, mas deve ser conhecido, para entendermos o presente e não cairmos nas armadilhas do futuro ilusório que nos mantém presos à toda sorte de manipulação. A quem interessou a queima de tantos livros da antiguidade? Por que não foram queimados os que restaram? Que curso a história teria tomado com os conhecimentos que eles trariam? Os fundamentos que herdamos foram os melhores que poderíamos ter? Quem determinou o que seria melhor? A quem interessou?"

– Gutto Carrer Lima




NOTA: A frase do venerável Jorge faz deste um dos pontos fortes da história, em que o autor dá chance à várias interpretações. À primeira vista, as atitudes e palavras do venerável são ironizadas, fazendo dele e de sua justificativa, a vilã de toda a trama. Mas sob um ponto de vista eclético, o venerável não está totalmente errado. Eu percebo que o próprio Willian de Baskerville, na aflição de tentar salvar as obras do incêndio, de repente para, talvez pensando que o venerável tenha boa dose de razão. Willian salva o pouco que consegue carregar, e vejo nisso um símbolo: diante de tanto conhecimento, é relativamente pouco o que conseguimos dar conta. – Associei rapidamente a cena à algumas reflexões que faço em meu livro. – A igreja medieval se fundamentava numa intenção boa, dada a crença da época, apesar de seus métodos ruins dominantes e dos interesses obscuros de riqueza e poder que impingiram tanto sofrimento. No século seguinte à linha temporal da obra, Maquiavel escreveu que "o homem respeita mais ao que teme do que ao que ama". – Até que ponto foi um erro da igreja promover a ordem mediante o temor, considerando-se a natureza humana? Seria possível, dada a ignorância de seu tempo, em vez do medo, promover a conscientização no amor? – A dicotomia se fez presente antes, como se faz hoje. O carnaval é uma ótima referência de caos, e serve como analogia para a condenação do "rir de tudo" como forma de conter os instintos humanos, cuja essência não costuma fazer as melhores coisas quando livre de quaisquer limites. Até mesmo por amor, também erramos. E por prazer, ignoramos as consequências.   (GCL)


(*) O Nome da Rosa (em italiano: Il nome della rosa) é um romance do escritor italiano Umberto Eco, lançado em 1980 que o tornou conhecido mundialmente. (Fonte: Wikipédia) – Filme de 1986 dirigido por Jean-Jacques Annaud baseado no romance homónimo. (Fonte: Wikipédia)




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