Acho que vi um boizinho

São três horas da manhã, a segunda madrugada do novo ano. Todos dormem tranquilamente enquanto leio sob céu aberto, sentindo a gostosa brisa típica do horário quando os frescores marítimos deslocam-se para as margens terrestres para inspirar a natureza com ares de renovação. A casa fica ao pé de uma serra, a oitocentos metros de uma praia isolada em área de proteção ambiental, acessível somente por uma estrada de terra. O terreno, cercado por muros, ainda não tem portão; o dois carros estacionados na entrada dão a sensação de privacidade, mas não impedem a entrada de quem quer que seja ao grande gramado com coqueiros, ali plantados há mais de dez anos.

Estou na última página de um livro sobre alucinações visuais e auditivas que decorrem de anormalidades neurológicas e fisiológicas. Nunca me atentei ao cérebro e à relevância da sua anatomia, concentrando-me apenas na mente como principal responsável pelos nossos sentidos. Surpreendo-me por saber que a mente, sem um cérebro sadio, não seja capaz de sentir a vida em todas as suas sutilezas sensitivas. Mas o cérebro é formidável, dotado de incrível plasticidade para compensar disfunções. O cérebro de surdos e cegos, por exemplo, sob determinadas circunstâncias, podem desenvolver capacidades extraordinárias de ver e ouvir coisas nunca antes vistas e ouvidas, com absoluto realismo.

Sentado numa cadeira baixa de praia com o livro no colo e absorvido pela leitura, tenho entre mim e a entrada da casa uma piscina de sete mil litros do tipo inflável cuja água repousa como um espelho horizontal. Eis que ouço o som grave e abafado de pegadas que somente algum ser pesado e grande poderia fazer; percebo que a água da piscina se agitou. Desvio o olhar para a frente e vejo, a uns seis metros de mim, um enorme boi bebendo água (!) – Este livro que estou lendo é mesmo muito bom! – pensei imediatamente, notando-me um pouco confuso com o que via e ouvia, mas fixando-me, surpreso, na imagem. Nunca me esquecerei da expressão naqueles olhos bovinos, completamente presentes, inocentes, entregues ao momento e à ação sem nenhuma preocupação comigo. Eu não sabia se assumia o episódio como real ou como alucinação visual e auditiva influenciada pela leitura em curso. Levei bem uns três segundos para resolver-me, vendo o segundo boi entrando, e o terceiro, e o quarto. Os bois se alinharam para beber na piscina circular, de frente para mim que ali permanecia sentado com o livro no colo, com a impressão de que eles me assistiam enquanto eu os assistia.

Saciados, os quatro bois voltaram-se para o lado direito em direção ao gramado, num interessante movimento sincronizado. O instante pareceu uma dança. Eu também me levantei da cadeira, mas eles em nada reagiram, espalhando-se pelo terreno como se este já lhes fosse conhecido. Após observá-los por um minuto, e estando eles distantes de alguns metros da porta de vidro do quarto onde Denise dormia, fui acordá-la:

— Denise, acorde, abra os olhos e veja o que está passeando pelo quintal... – eu disse, com cuidado para que ela não se assustasse.

Acordando, ainda sem mover-se, Denise podia vê-los da cama e disse: — Acho que vi um boizinho... Estou sonhando? – De fato, o boi mais visível daquele ângulo era menor.

— Você também pode vê-los? – perguntei.

— Claro que sim!

Denise levantou-se e fomos juntos caminhando descalços sobre a grama molhada de orvalho. Ficamos bem próximos deles.

— Guto, eles são lindos! O que aconteceu? Como chegaram aqui?

— Não sei; eu estava sentado, lendo, e de repente eles entraram, beberam água na piscina e agora estão aí...

— Eles estão pastando. Veja como são inocentes, Guto. Eles não têm nenhuma noção de risco, não parecem sentir medo da gente. Bois podem seguir gente para qualquer lugar e direção.

Eram dois bois brancos, um marrom e outro malhado. Ali ficamos por uns dez minutos, observando-os e ouvindo o barulho que fazem arrancando a grama do chão e comendo. Até que, da mesma maneira como entraram, também saíram, enfileirados, com o maior deles na frente.

— Ah, que pena... eles já foram! – eu disse.

— Guto, isto foi uma experiência, um presente! Eu acho que foi um sinal para nós, sabia?

— O que você sentiu? – perguntei.

— Amor! Senti amor!

— Foi o que também senti, Denise. Não teria outro nome para descrever. Senti amor pela inocência deles. E estou com remorso por tanta carne que comi no churrasco de ontem.

— Talvez seja este o sinal, Guto – disse ela. Vamos deitar agora?

— Sim.

Ainda faltava metade da última página do livro para eu concluir a leitura, mas deixei para depois. O que vi não fora uma alucinação, foi real, aconteceu, surpreendeu como uma experiência inusitada e, portanto, inesquecível. O sentimento, a emoção e reflexão também foram reais. Tão reais como ver e ouvir. Coisas que fazemos também com o cérebro, além da mente, alma e coração.

Tive dificuldade para dormir, tomado por uma repentina azia, lembrando-me dos excessos do dia em contraste com o episódio recente. É possível que o estômago também tenha parte em nossos sentidos, bem como cada célula do corpo, captando e comunicando-se entre si para compor a nossa percepção de vida e agir a partir dela.

— Guto, você ainda não dormiu?

— Ainda não... Estou com azia e comovido pelos bois. Acho que voltarei a ser vegetariano.


Gutto Carrer Lima





















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